20 de janeiro de 2010

Clarificação dos Conceitos - Serge Paugam

Clarificação dos conceitos – Serge Paugam

Serge, Paugam (2003) A desqualificação social. Ensaio sobre a nova pobreza. Colecção Educação e Trabalho social 6. Porto: Porto Editora

“Desqualificação Social”

Para Serge Paugam hoje em dia não é possível considerar que as populações em situação de precariedade económica e social são “herdeiras de gerações de trabalhadores e de miseráveis da era pré-industrial. É mais correcto falar de uma sobreposição de formas antigas e novas de «pobreza» (…) e, mais particularmente, (…), os «assistidos» e os «marginais». Os «frágeis», esses, podem ser considerados, por definição, como uma população «nova». É claro que as formas institucionais da precariedade económica e social são, hoje em dia, muito diversificadas e que as populações abrangidas pela intervenção dos trabalhadores sociais são cada vez mais numerosas”. São “populações «assistidas», de origem popular e muito frequentemente sem qualificações (…) estas populações correm o risco de serem afastadas do mercado de emprego, pelo menos dentro do sector concorrencial da economia – que exige, como sabemos, um nível elevado de qualificações (…)” (p. 171).

Assim, para Paugam nas “sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que tem falta de bens materiais, corresponde igualmente a um estatuto social específico, inferior e desvalorizado que marca profundamente a identidade dos que a experimentam” (p. 23). Na actualidade a pobreza é apreendida de forma negativa, como o autor salienta “a pobreza é o símbolo do fracasso social e traduz-se, muitas vezes, em termos da existência humana, por uma degradação moral” (p. 24).

A desqualificação social é um conceito utilizado por Serge Paugam, refere-se, numa primeira aproximação àqueles “que não participam plenamente na vida económica e social”, nesse sentido analisar a desqualificação social dos indivíduos é “estudar a diversidade dos estatutos que os caracterizam, as identidades pessoais, quer dizer, os sentimentos subjectivos da própria situação que vivem no decurso de várias experiências sociais e, enfim, as relações sociais que mantêm ente si e com os outros” (p. 24-25).

A sociologia da pobreza analisa um “grupo real a quem a sociedade reconhece um estatuto específico – no caso presente, o de assistido” (p. 29). Paugam considera que “a concessão da assistência, em certos casos, pode ser vivida como uma ‘cerimonia de degradação estatutária’ na medida em que o candidato é, neste momento, designado como um indivíduo pertencente a uma categoria ou a um estatuto pouco honroso” (p. 30). O mesmo autor salienta ainda que “a relação regular com um trabalhador social cujo papel é, por vezes, dirigir-se ao domicílio da família e assumir a responsabilidade da totalidade das suas dificuldades materiais ou morais, pode ser, igualmente, uma provação para os ‘assistido’ obrigados, neste caso, a revelar a sua vida privada à investigação pública” (p. 31)

Para Paugam a compreensão e análise da desqualificação das populações “pobres” “não é somente o efeito da imposição, pelos trabalhadores sociais, de um estatuto social degradado, nem também unicamente a aprendizagem dos papeis sociais que estão de acordo com este estatuto, é também a aceitabilidade – ou a não aceitabilidade – do processo de identificação e etiquetagem” (p. 32)

No estudo que desenvolve S. Paugam tenta elaborar uma classificação da população dos serviços de acção social, tendo em conta (p.34): i) “o estatuto jurídico que confere, ou não, direito a um rendimento de trabalho ou de substituição do mesmo que pode explicar, pelo menos parcialmente, as dificuldades financeiras”; ii) “o tipo de relação mantidas com os serviços de acção social”, que podem ser pontuais ou regulares; iii) “analisar as características demográficas e sociais destas populações”

A partir da análise das estratégias de acção junto desta população o autor construiu uma tipologia de intervenções sociais a partir da qual criou três tipos/ categorias de beneficiários da acção social:

a) Tipologia da intervenção social: pontual/ Tipo de beneficiário da acção social: frágeis

b) Tipologia da intervenção social: regular/ Tipo de beneficiário da acção social: asssistidos

c) Tipologia da intervenção social: infra-intervenção / Tipo de beneficiário da acção social: marginais

Os tipos de beneficiários não são uma categoria administrativa mas sim de tipos ou categorias analíticas, ou seja, de “conjuntos de pessoas que têm características comuns e construídas pela necessidade de compreensão sociológica”. A divisão dos tipos de beneficiários criado por Paugam “assenta na análise da condição social objectiva e agrupa famílias cuja situação é comparável quanto à intervenção social” (p. 35). Nesse sentido para o autor os tipos de beneficiários podem ser definidos como:

i) Frágeis: são os indivíduos que “beneficiam de uma intervenção social pontual no domínio orçamental”, ou seja, devido a dificuldades financeiras. Regra geral a sua dificuldade económica está ligada a um estatuto jurídico inferiorizado caracterizado pela “incerteza ou irregularidade dos rendimentos, que leva a uma participação reduzida na vida económica e social”. Alguns dos exemplos que o autor dá para esta categoria são as situações de: desemprego, trabalho temporário, trabalho a tempo parcial, contratos e duração determinada, estágios, formações alternadas (p.35).

Esta categoria possui um ponto comum entre os seus membros: “um sentimento de inferioridade social” (p. 51). Se tivermos em conta que na actualidade o estatuto do emprego “assegura, simultaneamente, uma segurança material e financeira, relações sociais, uma organização do tempo e do espaço”, (p. 54) e condiciona as diferentes dimensões da vida social. A falta de emprego e, consequentemente, a de recursos reforça o sentimento de inferioridade social. No entanto, “este acontecimento não é vivido da mesma maneira pelo conjunto dos frágeis”, sendo possível, segundo Paugam, distinguir dois tipos de situações (p.54):

a. Fragilidade interiorizada: integra os indivíduos “cuja inferioridade social se traduz pela humilhação, pela desordem mental, pelo fechamento sobre si e pelo ressentimento, até mesmo pela condenação a uma posição que lhes parece injusta”

b. Fragilidade negociada: integra os indivíduos que “tentam conjurar o insucesso elaborando projectos e multiplicando os procedimentos para ‘saírem dele’. Neste caso, a inferioridade social é considerada como sendo uma situação temporária”



ii) Assistidos: são os indivíduos que “beneficiam de uma intervenção social relativamente ‘pesada’ ou, noutros termos, de um seguimento de tipo contratual pelos trabalhadores sociais”. Os rendimentos que possuem provêm dos apoios concebidos pela protecção social e caracterizam-se por dificuldades várias que podem ser de “deficiência física ou psicológica ou na dificuldade de prover a educação e sustento dos filhos” (p. 35).

Nesta categoria o autor distinguir três experiencias distintas que denomina de:

a. Assistência diferida: esta categoria de indivíduos “ficam, geralmente, motivados para a busca de um emprego. Apesar de uma dependência bastante forte em relação aos serviços da acção social e aos trabalhadores sociais – o que não é o caso dos frágeis – aceitam dificilmente o acompanhamento social regular e a orientação assistencial do conjunto das suas dificuldades ou das suas deficiências. Não se consideram assistidos” (p.75)

b. Assistência instalada: Esta categoria de indivíduos sente uma “progressiva identificação com o estatuto de assistido. Tal não significa, por isso, uma submissão aos serviços de acção social, mas importa sublinhar os seguintes traços: uma motivação para o emprego mais fraca, a elaboração de racionalizações para justificar a assistência e estratégias lineares de relação com o trabalhador social” (p. 80)

c. Assistência reivindicada: Esta categoria acentua as categorias da assistência instalada, pelo que apresenta as seguintes características: “nenhuma motivação para o emprego é observável e a dependência relativamente aos serviços de acção social torna-se mito forte. Constata-se, igualmente, o nascimento de conflitos, passageiros ou duráveis, na relação com os trabalhadores sociais”. Trata-se do “último estádio da carreira de assistido” (p.91)



iii) Marginais: são os indivíduos que “não dispõem nem de rendimentos, ligados ou derivados de um emprego regular, nem de subsídios de assistência regulares”. São àqueles que ou não recebem qualquer apoio de protecção social ou usufruem ajudas financeiras pontuais de montante pouco elevado ou em espécie. Esta categoria caracteriza-se por estar “desprovidos de estatuto de poder” (p. 35). O autor salienta, ainda, que no decurso do processo de marginalização os indivíduos “sabendo-se desacreditados, chegam a resistir ao estigma” (p.98).

Esta categoria inclui, segundo Paugam, dois tipos de experiências diferentes:

a. Marginalidade conjurada: Neste grupo encontra-se os indivíduos que “diminuídos pelas dificuldades materiais e morais da sua situação” procuram “conjurar este modo de vida que consideram, simultaneamente, inseguro, instável e aviltante” (p.106)

b. Marginalidade organizada: esta categoria corresponde “à reconstrução de um quadro cultural tolerável num espaço no próprio limite da exclusão social. Trata-se, simultaneamente, de uma adaptação individual a uma condição miserável e de uma resistência simbólica à estigmatização” (p.49). Estes indivíduos possuem grandes dificuldades em encontrar alojamento, estando comummente soluções como: “a habitação clandestina, o alojamento a título gracioso ou num albergue, a caravana, a barraca de madeira ou o casebre” (p. 112)



A “identidade negativa”

Serge Paugam constatou no seu estudo que “os indivíduos têm consciência de herdar um estatuto desvalorizado quando residem num conjunto habitacional – uma comunidade – cuja reputação é má” (p.129). O autor utiliza a expressão “identidade negativa” para caracterizar os traços desvalorizantes de uma comunidade, que acaba por integrar a consciência social dos seus habitantes, de tal modo que os habitantes “herdam um estatuto desvalorizado e experimentam a desqualificação social” (p.133). Obviamente que nem todas as famílias em situação de precariedade habitam neste tipo de comunidade e nem todos os habitantes destas comunidades vivem uma situação de dificuldade de inserção social (p.130).

O fenómeno da desqualificação social é, segundo o autor, “o produto de uma construção social”, onde o “mau nome” da comunidade “repousa, pelo menos em parte, nas representações colectivas que se formaram no exterior” desses espaços residenciais e que “corresponde a uma forma de conhecimento social espontânea, generalista e muitas vezes superficial da realidade”. Esta imagem, em regra, mergulha “na consciência social dos habitantes, os quais têm tendência para, daqui por diante, se conformarem com ela” (p.141).

No entanto “a constituição e persistência de uma identidade negativa não são observáveis em todas as cidades socialmente desqualificadas”. Verifica-se, segundo o autor, que “as famílias que nelas residem sobrelevam, por vezes, gestos de entreajuda espontâneos (…). Interpretando os traços negativos e a má reputação das respectivas comunidades querem, assim, mostrar que não são ‘menos’ do que os outros, mas que são ‘diferentes’”. Nestas situações ocorre uma “valorização da identidade colectiva e de uma mobilização geral de todos os habitantes em defesa de um território comum” (p. 143).

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