17 de dezembro de 2010

Moradores de uma terra sem dono*

O retrato da realidade dos moradores em situação de rua, indivíduos invisíveis aos olhos da sociedade, que perderam a cidadania e na medida em que nada têm, a principal coisa que lhes falta é dignidade

Robson Rodrigues*

Pri Vilariño

A crescente população em situação de rua no Brasil é o retrato mais cruel da miséria social que se aprofunda em diversos ramos da esfera pública. O atual estado é a consequência de uma reação em cadeia que relaciona os altos índices de desemprego, rebaixamento salarial, uso de drogas e violência. Morar na rua é o reflexo visível do agravamento social no Brasil, e a falta de políticas públicas eficientes se constitui negligência do poder público em garantir a esse cidadão condições mínimas de sobrevivência. Os mais miseráveis estão entre os que mais incomodam politicamente, estigmatizados como perigosos socialmente por serem os que não participam da geração de riquezas.

Um contingente de pessoas que pouco usufrui dos serviços básicos públicos, à mercê do Estado e indiferente à sociedade civil. Para sobreviver buscam alternativas para o banho, necessidades fisiológicas, alimentação e vestuário. Vivendo literalmente nas ruas e dormindo sobre trapos ou papelão, pessoas que constroem nas ruas suas próprias histórias, mas não como querem; não sob circunstâncias de suas próprias escolhas, e sim, sob aquelas com as quais se defrontam diretamente, legadas e transmitidas principalmente pelo passado trágico de uma vida que deixaram para trás. Apesar de serem atores da própria história, só são capazes de agir nos limites que a realidade impõe.

“E nesse aspecto veremos que a sociedade brasileira e seu ainda recente processo democrático não desenvolveram plenamente tais mecanismos. Ainda temos significativas parcelas da população alijadas da participação seja do processo político, seja da própria condição de cidadão” Juraci de Oliveira, Sociólogo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

Pri Vilariño

SOCIEDADE E ESTADO

O atual estado no qual se encontra a população de rua brasileira é o resultado de um conjunto de fatores que colaboram para a manutenção dessa situa ção. A ineficácia do sistema público se agrava quando não estão disponibilizados meios sociais fundamentais – programas de saú de, atendimento a usuários de drogas, abrigos, atenção à família, entre outros. O fator de primeira instância relacionado à situação dos moradores de rua é o desenvolvimento de novas técnicas de trabalho, criando uma enorme massa de desempregados na qual o sistema capitalista não consegue sustentar.

Numa sociedade capitalista que se organiza com base na compra e venda da força de trabalho, a legitimidade social e a dignidade pessoal de um indivíduo se afirmam por meio da ética do trabalho. A população de rua tem um histórico de perdas de emprego e baixa qualificação profissional, assim não se asseguram como integrantes do tecido social.

As causas relacionadas são multifatoriais e vão de questões como as mudanças nas relações de trabalho decorrentes da tecnologização dos processos produtivos, fluxos migratórios de mão de obra e a redução e desvalorização das atividades de baixa qualificação. Na avaliação do psicólogo e pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP, Dr. Walter Varanda, “os estigmas do fracasso, da impotência, da vagabundagem e da menos- valia levam ao distanciamento das estruturas sociais, e no anonimato restam as estratégias de sobrevivência possíveis na região central e áreas comerciais da cidade, que incluem, por sua vez, uma ampla rede solidária que torna a vida nas ruas uma alternativa viável, ou pelo menos mais viável que a pobreza extrema. Nesse contexto, relaxa-se a obrigatoriedade de deveres, regras de convivência e obviamente do alto custo de vida urbano, e de maneira geral, esse problema social incomoda as grandes metrópoles no mundo inteiro”.

O descaso do Estado com os desabrigados reflete inclusive nas leis que regem o País. Até 2009, a mendicância era considerada uma transgressão penal no Brasil, quando o artigo da Lei de Contravenções Penais foi revogado pela Lei nº 11.983 pelovogação pode até significar um avanço no modo como o poder público trata o caso, porém demonstra também como um Estado incapaz de garantir condições mínimas de sobrevivência, até recentemente, condenava quem mendigasse.

Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social, já existem políticas específicas voltadas para essa parcela da população. Desde 2006, o Ministério envia recursos para serviços de acolhimento de famílias em situação de risco nos municípios. O repasse do Ministério é de 1 milhão de reais para 94 municípios brasileiros que têm mais de 250 mil habitantes. Esses recursos são originários do que chamamos de “Piso de Alta Complexidade II”. Ele é destinado ao “Serviço de acolhimento institucional para adultos e famílias em situação de rua”. Esse serviço é executado nas casas de passagens e abrigos institucionais. Porém, as políticas da esfera federal divergem com as da municipal.

Nesse aspecto, a cidade de São Paulo deu provas de que ainda não trata do tema com a devida atenção. Isso pode ser demonstrado, por exemplo, com o fechamento de quatro mil vagas em albergues no centro de São Paulo, concentrando o atendimento nos bairros mais afastados. A possibilidade de não encontrar vaga em albergues para moradores de rua ou pessoas em situação de rua é cada vez maior. Sem contar, por exemplo, as rampas “contra morador de rua” nas extremidades subterrâneas da Avenida Paulista, com piso “chapiscado”, tornando-o mais áspero e incômodo para quem tentar dormir. Os viadutos da grande cidade acabam por se tornar “condomínios de luxo” dessa classe de brasileiros excluídos.

Para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho Barbosa, “um dos fatores apontados como autoritário é o fechamento dos albergues na região central da cidade e sua abertura em localidades distantes, em outras palavras, higienização. Assim, nota-se um número maior de pessoas dormindo nas ruas da região central”, alerta.

Contudo, tal ação não tem surtido o e fei to na proporção esperada, e muitos moradores de rua permanecem no centro, até porque uma de suas atividades mais característica – a de coletar papel e outros materiais para reciclagem – tem nessa região seu principal manancial.

Isso evidenciaria uma tendência a impelir os moradores de rua a saírem das zonas centrais da cidade. Na análise do sociólogo, especialista em Gestão Educacional e supervisor de programas de educação, trabalho, cultura e formação profissional, Juraci Antonio de Oliveira, a situação demonstra que a sociedade brasileira ainda não atingiu seu estágio máximo de desenvolvimento democrático. “Isso tudo nos leva ao tema da democracia (…). O que se coloca em jogo aqui são os canais, os meios de participação com que contam os diversos grupos e segmentos que compõem o tecido social. E nesse aspecto veremos que a sociedade brasileira e seu ainda recente processo democrático não desenvolveram plenamente tais mecanismos. Ainda temos significativas parcelas da população alijadas da participação seja do processo político, seja da própria condição de cidadão”, argumenta.

Além disso, o indivíduo das ruas muitas vezes é privado de seu direito de ir e vir, uma afronta à cidadania e à democracia. Para Oliveira, “é comum quando, às vésperas de importantes eventos na cidade, acontece a tentativa de afastar os moradores de rua das regiões que se constituem como os cartões postais. Isso evidencia a falta de sensibilidade dos governos municipais quanto a essa questão”, destaca o sociólogo.

Por outro lado, não se deve negar a resistência de parte de algumas dessas pessoas com relação aos albergues. Conhecidos como local de passagem, uma vez que oferecem abrigos de curta duração, os albergues têm horários definidos e regras consideradas rígidas pelos usuários, além disso, os internos precisam deixar seus objetos pessoais, submeter-se ao banho vigiado e permanecer em silêncio. Tais regras impelem conflitos entre frequentadores e agentes quanto a funcionalidade da instituição. A questão se agrava quando se observa a existência de uma regra implícita que relaciona bom comportamento a tempo de permanência.

E nesse estado de calamidade pública a responsabilidade não recai apenas sobre os ombros do Estado, a sociedade civil é responsável também pelos traumas sociais. A culpabilização do morador de rua pela situação em que se encontra não desobriga a sociedade civil de qualquer responsabilidade. Na opinião do pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP, Walter Varanda, ao adotarmos a distinção entre a sociedade civil e o poder público, para a devida responsabilização do Estado, ficamos à mercê de explicações e justificativas oficiais, que nem sempre condizem com a complexidade da questão e alimentam o estereótipo do morador de rua que se recusa a aceitar supostas ajudas para a sua reintegração social em troca da “liberdade” da vida nas ruas.

A consequência direta da usurpação da cidadania e dos direitos fundamentais está diretamente associada ao crescimento assustador da população de rua. Segundo a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua realizada pelo Governo Federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em abril de 2008, o ministério identificou 31.922 pessoas –acima de 18 anos – vivendo nessa condição. A pesquisa envolveu 71 municípios, sendo 23 capitais e 48 cidades com mais de 300 mil habitantes.

Na análise do ex-morador de rua e coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Anderson Lopes Miranda, o número atual é muito maior. “O Brasil tem 5.565 municípios, se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fizesse um censo que estamos cobrando, o número estaria em torno de um milhão de pessoas vivendo nas ruas”, calcula.

Para se ter uma ideia, só na cidade de São Paulo, nas últimas duas décadas, o número saltou de três para mais de 13 mil pessoas vivendo nas ruas. Para o pesquisador Walter Varanda, “o crescimento da população de rua seria ainda maior, não fosse o alto índice de mortalidade decorrente das condições de insalubridade a que estão sujeitos”, acrescenta.

Fora de São Paulo é mais difícil mensurar o número e a situação dos moradores de rua. E a própria sociedade tenta esconder essa realidade assustadoramente cruel. Segundo Anderson Lopes Miranda, “as cidades omitem sua população de rua porque não querem reconhecer que falta muito a se fazer por essas pessoas”. Miranda, que morou por 15 anos nas ruas, relata que nas capitais o indivíduo até consegue tirar documentos e utilizar alguns serviços básicos; já fora dos grandes centros a situação é inversa. “Por meio da ‘higienização’ a guarda das prefeituras retira todos os pertences do indivíduo, inclusive documentos e bens pessoais”, conta.

Para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho Barbosa, “não existe por parte do governo municipal uma política clara em relação à população de rua, que seja intersecretarial, mas sim, ações pontuais. As entidades conveniadas reclamam também dos valores repassados para manutenção dos equipamentos destinados a essa população”. Ou seja, políticas paliativas que não resolvem o problema, dessa forma, o sistema público não enxerga as sutis diferenças entre viver na rua, estar na rua e ficar na rua, detalhes fundamentais na hora do desenvolvimento estratégico.

Assim, esse é um problema tanto da sociedade quanto do Estado e revela uma impotência em lidar com a situação de forma civilizada. De acordo com o pesquisador Walter Varanda, essa destituição total dos direitos do outro mostra desvios de caráter incompatíveis com a vida em sociedade. “O morador de rua torna-se, nesses casos, depositário de estigmas e negatividades, atuando como elemento expiatório de desequilíbrios sociais decorrentes do individualismo vigente na sociedade moderna. A simples aceitação das diferenças sociais nessa ordem de grandeza desumaniza a ponto de se confundir a pessoa com a situação em que ela se encontra, alimentando o estigma a ela imposto, negando sua história de vida e impedindo a identificação de suas qualificações e potencialidades como se elas não existissem e não fosse possível um novo projeto de vida”, afirma o pesquisador.

“O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais” Milton Santos (1926 – 2001), Geógrafo

Pri Vilariño

CIDADANIA CORROMPIDA

O conceito de cidadania na sociedade a qual vivemos está fortemente relacionado à noção de democracia e direitos que permitem ao indivíduo participar de escolhas que afetam suas vidas. O pensador Norberto Bobbio concebia um regime democrático como um método de governo, um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, no qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados.

Contudo, como garantir direitos básicos a esse segmento de excluídos, sendo que quase a metade dessa população não possui qualquer documento pessoal como carteira de identidade ou título de eleitor – símbolos de cidadania – o que as exclui da vida civil, deixando de ter direitos e de serem reconhecidos como cidadãos? Indivíduos que pouco participam de processos fundamentais da vida política do cidadão, como votar. É nesse quesito que a atual democracia peca ao não cumprir suas promessas de igualdade, de ampla participação e garantia de direitos.

Mesmo despojados do preceito básico da democracia, tais indivíduos se constituem como cidadãos. Segundo o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “os direitos humanos foram uma conquista ao longo da história da civilização e que ainda hoje, em pleno século 21, é um campo que se encontra longe do consenso. O mesmo ocorre com status de cidadão. Poderíamos dizer que no limite, moradores de rua e tantos outros excluídos, são cidadãos, porém não são tratados como tal, não exercem seus direitos e deveres dentro dos padrões minimamente aceitáveis”, argumenta.

Já para o arte-educador do Centro de Inclusão de Pessoa em Situação de Rua, Orlando Coelho, “essas pessoas não são vistas como sujeitos de direito e que de alguma forma, em algum momento de suas vidas ou tiveram seus direitos negados ou alijados, mas, como vítimas de sua incapacidade ou de seu pecado e por lhes destinarmos um olhar de caridade, piedade, misturado com desprezo, não há um reconhecimento de sua humanidade”.

O geógrafo e professor Milton Santos acrescenta: “O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva e as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna”.

Mesmo sendo cidadãos por natureza, eles têm suas prerrogativas sucumbidas pelo Estado, que se diz pluralista e representativo, mas que não garante meios de sobrevivência a todos os cidadãos. De tal modo que não são apenas moradores sem casa, são também cidadãos sem direitos. Disso nasce a crítica na qual o filosofo Jean-Jacques Rousseau admitia que essa representatividade não traduz a vontade de um cidadão para o outro. Rousseau acreditava que a vontade só será geral se tiver a participação de todos os cidadãos de um Estado. Para ele, a soberania só existe se for geral. “(…) É a [vontade] de todo um povo ou de uma parte dele. No primeiro caso, esta vontade declarada é um ato de soberania e faz lei, no segundo, é simplesmente uma vontade particular, um ato de magistratura ou, quanto muito, um decreto”.

Mesmo em que no atual contexto de um país com mais de 190 milhões de pessoas a representatividade seja necessária, no caso dos moradores de rua o Estado não se aproxima de modo eficiente dessa categoria. Portanto, mesmo que os princípios democráticos indiquem igualdade entre os diferentes estratos sociais, o morador em situação de rua em nada é igual com relação ao restante da população. São iguais apenas entre si devido à própria condição, uma massa de desabrigados que estão em seu estado máximo de carência, o que reforça a perda da própria identidade e a situação de total exclusão social.

Essa opressão se materializa na violência e na intolerância praticada por vários agentes da sociedade contra os moradores de rua em geral. Os níveis de agressão e impunidade crescem a cada dia em todos os sentidos. O número de vítimas ao longo de 10 anos foi proporcionalmente maior. Os fatos recentes comprovam, e o mais marcante de todos foi o massacre ocorrido em 2004, no qual 15 moradores de rua foram atacados por um grupo, enquanto dormiam, na região central da cidade de São Paulo. Das 15 pessoas que dormiam, sete morreram, até hoje apenas um dos apontados como culpados pelos assassinatos foi preso.

“Os estigmas do fracasso, da impotência, da vagabundagem e da menos-valia levam ao distanciamento das estruturas sociais, e no anonimato restam as estratégias de sobrevivência possíveis (…) que incluem, por sua vez, uma ampla rede solidária que torna a vida nas ruas uma alternativa viável, ou pelo menos mais viável que a pobreza extrema” Pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP

Pri Vilariño

O EFEITO DAS GRANDES CIDADES

A população de rua faz parte do cenário das grandes cidades do mundo. Trata-se de um segmento social que, sem trabalho e sem casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia.

Para o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “esse talvez seja um fenômeno comum aos grandes centros urbanos, onde convivemos com múltiplas realidades. De tanto convivermos com a diversidade e a adversidade, já não percebemos as nuances da cidade”.
Desse modo, esses indivíduos se tornam seres invisíveis aos olhos da sociedade, saturados pela miséria das ruas, pela negação dos direitos básicos e essenciais e vítimas dos próprios estigmas e adversidades. O sociólogo alemão Georg Simmel (1858 – 1918) destacava essa relação entre o indivíduo e a metrópole, da influência da grande cidade moderna na personalidade e na vida mental dos seus habitantes. Uma individualidade urbana caracterizada pela reserva, desconfiança, apatia e falta de solidariedade.

O que Simmel falava se torna evidente nas cidades do Brasil. A exposição dos habitantes urbanos a diversos contrastes e estímulos sucessivos da deplorável situação a qual se encontram os moradores de rua é tão grande a ponto de se chegar ao esgotamento da sensibilização, gerando cada vez mais discriminação e apatia. Essa indiferença com relação ao morador de rua – causada pela mendicância – provoca o que Simmel chamou de “caráter blasé”, ou seja, essas experiências vividas cotidianamente causam indiferença de grande parte dos indivíduos. Se não fosse assim, segundo o sociólogo alemão, os habitantes dos grandes centros entrariam num estado mental de excitação tal que levaria a neurose, dada à diversidade, velocidade e intensidade dos estímulos aos quais estão expostos.

“Assim como uma vida imoderada de prazeres torna-se blasé, porque excita por muito tempo os nervos nas suas reações mais fortes, até que eles acabam por já não ter nenhuma reação, assim também as impressões inofensivas, pela rapidez e pela incompatibilidade da sua mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem para cá e para lá de modo tão brutal, que eles entregam a sua última reserva de forças e, permanecendo no mesmo meio, já não têm tempo para acumular uma nova (…). A incapacidade, assim originada, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é justamente aquele caráter blasé”, afirmou Georg Simmel.
O indivíduo da grande cidade como São Paulo, rodeado por milhares de modificações individuais, cria um órgão protetor. A presença da população de rua na modernidade está tão incorporada à paisagem que já se tornou banal. Paradoxalmente, só são notados pela grande maioria da população quando não estão presentes. A intensificação de ver constantemente pessoas no estado máximo de carência e desamparo não gera mais compaixão; ao contrário, brota uma mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores, e a contemporaneidade não é apenas um cenário onde esse grupo reside, é, antes de mais nada, um pré-requisito para que ele exista.

Por outro lado, podemos evocar também o dramaturgo alemão Bertolt Brecht que propunha o exercício do distanciamento como forma de estranhamento da realidade para podermos exercer melhor nossa crítica. Dessa forma, podemos perceber as iniquidades do cotidiano, das quais não nos damos conta, pois estamos imersos nessa realidade e dela fazemos parte. Brecht dizia que aquele que não estranha mais a violência, que sequer a percebe, é porque também já se tornou violento.

Quem são os moradores de rua?

De acordo com o Censo de São Paulo de 2010 realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe), coordenado pela economista e professora da FEA – USP (Universidade de São Paulo), Silvia Maria Schor, quase 80% das pessoas que vivem nas ruas são homens em idade média de 40 anos. Os dados revelam a dificuldade de reintegração ao mercado de trabalho.

Isso expõe o quanto a desqualificação profissional limita a inserção no mercado de trabalho. O pesquisador de população de rua e uso de drogas da Faculdade de Saúde Pública da USP, Dr. Walter Varanda vai além. “A população de rua é constituída na sua maior parte por adultos em idade produtiva, como mostram os censos realizados, sua situação é praticamente a mesma ao longo das últimas décadas apesar de serem sujeitos de direitos, e existem sérios equívocos em tratá-la como caso de polícia”, salientou o pesquisador.

O perfil dessas pessoas mostra que, apesar de mais de 90% saberem ler e escrever, a maioria não chegou a completar o ensino fundamental. Para o sociólogo Juraci Antonio de Oliveira, “o fato da maioria dessas pessoas terem certo grau de escolaridade indica que tinham um nível de participação na vida social”. Porém, na atual situação a qual estão, encontram-se à margem da Desenvolvisociedade e desprovidas de atuarem como devidos cidadãos que são. Os dados também revelam que na sua grande maioria são “não brancos”, incluindo-se os negros, pardos, amarelos e indígenas. Observe no gráfico os números sobre a distribuição dos moradores de rua por cor e sexo, segundo os dados da pesquisa.

O uso de drogas também é uma constante. A maioria dos moradores de rua bebe e usa drogas. Entre os 18 e 30 anos, a proporção atinge 80%. A droga mais consumida é o crack. De acordo com o pesquisador Walter Varanda, o uso de álcool e drogas está relacionado ao autocontrole, autonomia e estados alterados de consciência em decorrência do uso. “Aos rituais de uso estão associados à sociabilidade, às relações de parceria, proteção e segurança. A vida nas ruas é recheada de códigos, de “jeitos” que tornam o crack para uns e a bebida para a maioria uma opção interessante, sem falar da disseminação da maconha, que permeia o uso das outras drogas. Isto quer dizer que o uso abusivo, na situação de rua, é mais intenso que em outras situações em que o sujeito convivesse com algum controle social. Quando os ganhos com o uso da substância são maiores que os ganhos em situações nas quais haja controle, por exemplo, no ambiente de trabalho ou familiar, o sujeito vai procurá-la na rua”, expõe o pesquisador.

Também a alta taxa de usuários se deve à intervenção neuroquímica da substância que alivia, conforta, estimula, anestesia, diminui a autocensura, relaxa o autojulgamento e permite certa maleabilidade da autoimagem, principalmente aquela que o sujeito não gosta. “Além disso, a embriaguez viabiliza processos nostálgicos através de mergulhos em dinâmicas emocionais regredidas, permitindo a reedição de padrões comportamentais aprendidos e valorizados em outros momentos da vida”, lembrou VarandOutro fator que pode ajudar a entender esse fenômeno é a questão do histórico da população de rua da cidade, já que mais da metade dos moradores foi internada em alguma instituição, predominando casas de detenção, clínicas de recuperação de álcool e drogas e Febem. Entre os jovens, 70% já passaram por alguma instituição.

Entre o espaço público e o privado

Excluídos da sociedade, os moradores de rua ressignificam o único espaço que lhes foi permitido ocupar, o espaço público, transformando-o em seu “lugar”, um espaço privado. Espalhados pelos ambientes coletivos da cidade, fazendo comida no asfalto, arrumando suas camas, limpando as calçadas como se estivessem dentro de uma casa: assim vivem os moradores de rua. Ao andar pelas ruas de São Paulo vemos essas pessoas dormindo nas calçadas, passando por situações constrangedoras, pedindo esmolas para sobreviver. Essa é a realidade das pessoas que fazem da rua sua casa e nelas constroem sua intimidade. Assim, a ideia de individualização que está nas casas, na separação das coisas por cômodos e quarto que servem para proteger a intimidade do indivíduo ganha outro sentido. O viver nas ruas, um lugar aparentemente inabitável, tem sua própria lógica de funcionamento que vai além das possibilidades.

A relação que o homem estabelece com o espaço que ocupa é uma das mais importantes para sua sobrevivência. As mudanças de comportamento social foram sempre precedidas de mudanças físicas de local. Por mais que a rua não seja um local para viver, já que se trata de um ambiente público, de passagem e não de permanência, ela acaba sendo senão única, a mais viável opção. Alguns pensadores já apontam que a habitação é um ponto base e adquire uma importância para harmonizar a vida. O pensador Norberto Elias aponta que “o quarto de dormir tornou-se uma das áreas mais privadas e íntimas da vida humana. Suas paredes visíveis e invisíveis vedam os aspectos mais ‘privados’, ‘íntimos’, irrepreensivelmente ‘animais’ da nossa existência à vista de outras pessoas”.

O modo como essas pessoas constituem o único espaço que lhes foi permitido aponta que conseguiram transformar em “seu lugar”, que aproximaram cada um à sua maneira dois mundos aos quais estamos inseridos: o público e o privado.

REFERÊNCIAS
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 4ª edição. São Paulo: Nobel, 1998.

VIEIRA, M. A C. et cols., População de rua. Quem é, como vive, como é vista. São Paulo: HUCITEC, 1992.

* Robson Rodrigues é jornalista


Fontes:http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/32/moradores-de-uma-terra-sem-dono-a-questao-dos-moradores-194186-1.asp
http://culturaerevolucao.wordpress.com/2010/12/17/


Muito rico o material disposto também na Revista Sociologia , número 32. dez 2010,Sociologia Contemporânea.


Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo, eu encontrei o que eu estive olhando para